Documentário de João Jardim, Karen Harley e Lucy Walker. O filme relata a trajetória do lixo dispensado no Jardim Gramacho até ser transformado em arte pelas mãos do artista plástico Vik Muniz.
"Não é vergonha ser pobre,
vergonha é subir no mais alto degrau da fama
com a alma suja de lama."
vergonha é subir no mais alto degrau da fama
com a alma suja de lama."
(Frase de um personagem do filme "Lixo Extraordinário")
O lixo que produzimos, a arte que consumimos
Por Bruno Dorigatti
Publicado em: saraivaconteudo.com.br/
Depois de oitos anos sem ter um filme nacional concorrendo ao Oscar, e sem nunca ter concorrido na categoria de melhor documentário, o cinema nacional volta a figurar na mais famosa premiação da indústria do cinema.
O filme Lixo extraordinário, uma coprodução Brasil-Inglaterra, dirigida por Lucy Walker, João Jardim, e Karen Harley, vem conquistando platéias e prêmios mundo afora. Até agora, o documentário ganhou 23 prêmios em mostras e festivais, seja do júri ou do público, incluindo o de Sundance e Berlim, todos este ano.
O pano de fundo da história é do aterro sanitário de Gramacho, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, uma área aproximada de 1,3 milhões de metros quadrados. Ele recebe quase a totalidade do lixo produzido na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 8.800, e é lá que milhares de famílias tiram o seu sustento, chegando a recolher 200 toneladas diárias de material reciclável e tudo o mais que puder ser reaproveitado
O local está com seus dias contados, por conta dos riscos de infiltração na Baía de Guanabara e deve fechar em 2012. Em 2004, foi criada a Associação dos Catadores do Jardim Gramacho (ACAMJG), com o objetivo de lutar pelos direitos dos trabalhadores nas negociações sobre as ações reparadoras quando do fechamento, e é justamente Sebastião Carlos do Santos, o Tião, 32 anos e presidente da Associação de Catadores, o personagem principal de "Lixo extraordinário".
Na verdade, o filme parte da experiência do artista brasileiro Vik Muniz em Gramacho, quando este decide fazer, em parceria com catadores, fotos montadas a partir do lixo recolhido por lá. Muniz, nascido em São Paulo, vive em Nova York desde a juventude, depois que, ao tentar separar um briga na rua, foi baleado e recebeu dinheiro do atirador para que não o denunciasse. Foi essa bala que deu a oportunidade de ser quem é hoje, “o artista brasileiro que mais vende, talvez a pessoa mais em voga no exterior”. Frase que afirma no documentário a Tião, quando chega a Gramacho e começa a explicar o que pretende por lá.
Muniz realiza trabalhos em diversas técnicas e materiais, que incluem geleia, manteiga de amendoim, açúcar, fios, poeira, usados para reproduzir imagens clássicas, seja pinturas, como a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ou fotografias, como a de Seu Jorge. Recentemente, pôde ser visto na abertura da novela "Passione", da Rede Globo.
Outra grande sacada são as obras com açúcar feitas a partir de retratos de crianças em São Cristóvão e Nevis, uma ilha caribenha onde seus pais são explorados nas plantações de cana. Outro interessante e curioso trabalho foi feito a partir da poeira acumulada no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA (na sigla em inglês). Já em Versos, Muniz retrata os fundos de telas famosas de Picasso e Van Gogh, algo que transita entre a originalidade e a picaretagem.
Se o filme começa com certo didatismo, com uma breve apresentação de quem é o artista e como ele conseguiu vingar nos Estados Unidos, com narração e situações que claramente parecem ter sido encenadas, o longa ganha ritmo ao se aproximar do lixão e entrar na vida dos personagens, que têm a oportunidade de realizar um trabalho artístico. O documentário focaliza as histórias sofridas e difíceis das pessoas que optam por essa vida, muitos de classe média empobrecida por conta de alguma fatalidade, como doença, morte, demissão, alguma tragédia que os levou até o lixão. Há os que gostam, há os que odeiam, há os que não se importam muito. E Vik Muniz chega para quebrar essa rotina, oferecer a oportunidade de fazer arte com aquilo.
Tião foi um dos personagens que posaram como modelo para que a sua foto fosse reconstruída em larga escala com objetos catados em Gramacho. Foi fotografado como Marat no famoso quadro na banheira, apunhalado – imagem inclusive escolhida para ilustrar o cartaz do filme. Ele acompanha Vik a um leilão em Londres, onde vende a obra por 28 mil libras (R$ 74 mil). Tião não foi o único a ganhar dinheiro com este trabalho. Todos os que participaram do documentário montando as obras ganharam R$ 75 por dia, mesmo valor que conseguem trabalhando no lixão. Aqueles que tiveram seus retratos montados ganharam R$ 10 mil.
Curiosamente, o filme teve três diretores. Começou com a britânica Lucy Walker, passou às mãos do brasileiro João Jardim e foi finalizado pela também brasileira Karen Harley. Talvez por isso o resultado da montagem seja um tanto irregular. E se o documentário começa um tanto condescendente, como quem passa a mão na cabeça destes menos privilegiados, o resultado final é satisfatório, ao apresentar reflexões, ainda que iniciais, sobre o lixo que produzimos e a arte que consumimos. Resta saber se a Academia também se dobra a esta reflexão.